Módulo 5: Históricos e Conceituais da Saúde Mental e Atenção Psicossocial
Unidade 1: Aspectos históricos e fundamentos da psiquiatria, da saúde mental e da atenção psicossocial

Recortes históricos da loucura: saber em construção
Aspectos das Reformas Psiquiátricas

Linha do tempo

Final do século XVIII

No final do século XVIII destacamos um importante momento histórico, a Revolução Francesa (1789). Esta revolução teve raízes não somente na França, mas em todos os centros vitais do pensamento europeu sendo fundada no racionalismo. As ideias elaboradas propunham o progresso geral e a felicidade do gênero humano à luz da ciência, da razão esclarecida e do humanismo, em oposição ao obscurantismo e a aceitação cega dos dogmas (ENCICLOPÉDIA MIRADOR, 1986). Esta visão determinou uma nova abordagem da questão louco/loucura. Conforme Amarante (2007) a Revolução Francesa contribuiu significativamente com os direitos humanos, sociais e políticos e atualizou a noção de cidadania da Grécia antiga.

No campo político, as ideias da Revolução Francesa estabeleceram a separação dos poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário - com o predomínio do primeiro. Ao Direito Histórico, base da autocracia do absolutismo e fonte de privilégios da nobreza e do clero, contrapunha-se o Direito Natural dos homens nascidos iguais (ENCICLOPÉDIA MIRADOR, 1986).

Em 26 de agosto de 1789, na França, a Assembleia Constituinte aprova a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, com ênfase na liberdade, entendida como o direito de fazer tudo aquilo que não prejudique outrem. A declaração outorga o direito natural não somente à liberdade, mas também à igualdade, à propriedade e à segurança (ENCICLOPÉDIA MIRADOR, 1986).

A Revolução Francesa conjuga este feixe de ideias, colocando-as em prática. Emerge a concepção moderna de democracia pautada na figura do cidadão, indivíduo dotado de subjetividade fundada na razão universal, atributo que o eleva à condição de sujeito, apto a gerir sua vontade e responder por seus atos. Não sendo mais aceitável o poder absoluto, as condutas devem, de agora em diante, pautar-se em normas racionais (ENCICLOPÉDIA MIRADOR, 1986, p. 9.858).

Segundo Castel (1978, p.9), em 27 de março de 1790, na França, a Assembleia Constituinte estabelecia o Decreto que abolia as Lettres de cachet(cartas assinadas pelo Rei e utilizadas, dentre outras finalidades, para autorizar a prisão de alguém), no Art. 9o. As pessoas detidas por causa de demência ficarão, durante três meses, a contar do dia da publicação do presente decreto, sob os cuidados de nossos procuradores, serão interrogados pelos juízes nas formas de costume e, em virtude de suas prescrições, visitadas pelos médicos que, sob a supervisão dos diretores de distrito, estabelecerão a verdadeira situação dos doentes, a fim de que, segundo a sentença proferida sob seus respectivos estados, sejam relaxados ou tratados em hospitais indicados para esse fim.

Na medida em que o hospital deixou de ser um espaço da filantropia e da assistência social para se tornar uma instituição de tratamento médico de alienados, desacorrentados, porém institucionalizados, os loucos permaneceram enclausurados, não mais por caridade ou repressão, mas por um imperativo terapêutico. (AMARANTE, 2007 p. 35).

Com a chegada das instituições hospitalares, os médicos, em nome do saber sobre as doenças, passaram a administrar o hospital e deixaram a filantropia e o clero como instâncias secundárias. É nesse momento que Philippe Pinel inicia sua grande obra de “medicalização do Hospital Geral de Paris. Em 1793, Pinel passou a dirigir o Hospital de Bicêtre e Salpêtrière” (AMARANTE, 2007 p.28).

Assim, os loucos que Pinel encontra em Bicêtre e Salpêtrière pertenciam a esse universo - os indesejáveis de toda ordem, os vagabundos, os indigentes, os desempregados, os delinquentes e os pobres - é o local onde Pinel e a psiquiatria do século XIX encontram os loucos, e onde eles permanecerão (FOUCAULT, 2005).

Essa decisão, de manter os loucos institucionalizados, circunscreve toda a problemática moderna da loucura. A abolição das Lettres de cachet inscreve-se nessa ordem e são definidos, pela primeira vez, os elementos que constituem os fundamentos da assistência ao louco, conforme apresentado na animação a seguir:

Elementos que constituem os fundamentos da assistência ao louco:

Contexto político do advento do legalismo
A lei é a expressão da vontade geral - dela decorre a ruptura pela supressão do poder real que, juntamente com a família e o judiciário, mantinham o equilíbrio na questão da sequestração do louco.
Novos agentes
A justiça, os diretores de distritos e a medicina - passam a ter a incumbência de gerir a questão loucura.
Atribuição do status de doente ao louco
O louco deve se diferenciar dos seus companheiros da Grande Internação – os criminosos, vagabundos, mendigos e outros. O louco passa a ser reconhecido na sua diferença, a partir do aparelho que vai tratá-lo de agora em diante.
Nova estrutura institucional
A prática nos hospitais é definida como um lugar próprio para o louco dentro da sociedade burguesa em vias de se estabelecer

Fonte: Castel (1978, p. 10)

Para justificar a permanência do louco nos locais, era necessária uma justificação congruente com o novo contexto social, cujo lema passou a ser a liberdade, igualdade e fraternidade. Esses locais eram vistos como símbolo do poder despótico (SPRÍCIGO, 2001).

Com a nova ordem burguesa, começa a existir a necessidade de que o todo social seja ordenado por contrato, possibilitando um espaço autônomo necessário ao livre desenvolvimento de uma economia de mercado. Ao Estado, compete a vigilância da realização do acordado, fazendo prevalecer a liberdade dos cidadãos, os contratos firmados acerca da propriedade privada e a livre realização das trocas sob as leis de mercado. Sua função é garantir as premissas da legislação, somente intervindo quando é colocada em risco a estrutura contratual da sociedade. É nesta matriz que o louco não encontra o seu lugar, sendo necessário impor-lhe um estatuto (SPRÍCIGO, 2001).

O estatuto jurídico é alcançado através da promulgação pela Assembléia Constituinte, em 1838, na França, do regime dos insensatos. A justificativa para o internamento, além da esfera jurídica, vai sendo produzida à medida que se desenvolve a ideia de que a reclusão é capaz de eliminar a loucura (CASTEL, 1978).

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